Luiz Paulo Tupynambá
… sei que adiante um dia vou morrer, de susto, de bala ou vício, num precipício de luzes, entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços, nos olhos, nos braços de uma mulher…
Canção “Soy loco por ti América”, autoria de Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinan.
Hoje eu teria colocado aí em cima um pequeno botão de rosa perfumado pelos versos de Adélia Prado, ganhadora do Prêmio Camões de Literatura Lusófona. Não que a reunião de Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinan não mereça esse destaque. Acontece que, como sugere a canção “nesta loca Latinoamérica cualquier cosa puede pasar en un abrir y cerrar de ojos”. Entristecido, peço licença e escusas para Adélia Prado e trago para a cena “el señor Zuñiga”, com sua burlesca representação de mais um golpe militar fracassado, um toque de clarim desafinado e chinfrim.
A coisa acontece assim de repente, como um soluço. Uma publicação no “X” informa que um general com algumas tropas invadiu o Palacio Quemado, sede do governo boliviano. No primeiro momento vem a informação de que o presidente Lucho Arce teria sido deposto e o general iria em breve anunciar uma “junta” qualquer de golpistas, como sempre fazem. Mas logo vem o desmentido e surge na internet um vídeo do presidente Arce confrontando o general golpista e passando-lhe um “sabão” institucional.
Nas ruas circundantes ao Palácio de Governo tropas militares e policiais, com trajes e equipamentos de repressão novinhos, cheirando à fábrica, batem bumbo para assustar as pessoas que se juntam pelas ruas. Mas apesar dos bumbos e os “marcha-soldado” gritados pelos oficiais a multidão se forma e as pessoas notam que as tropas ali postadas não parecem ter um comando resoluto. Quando surge a transmissão mostrando o discurso de Lucho Arce anunciando o fim da rebelião, o povo marcha para cima dos soldados, que debandam. Ninguém os avisou que podiam tomar uma sova popular em caso de contragolpe. Achavam que seria mais um passeiozinho na praça, com a corriqueira chuva de gás lacrimogênio e o festival de porrada e bomba que sempre promovem quando se juntam “esquerdistas” que exigem o cumprimento da Constituição e a defesa do Estado de Direito. Dessa vez a coisa deu xabu e o melhor mesmo foi correr para dentro do quartel e discutir com os oficiais revoltosos quem tinha mais direito de se esconder debaixo da cama ou de usar primeiro o banheiro.
Eu sei que a Bolívia, nossa vizinha encostada ao Mato Grosso, para a maioria dos brasileiros fica mais longe que Júpiter. Ela é muito conhecida no mundo pelo número de golpes militares e civis tentados ou completados: foram mais de 190 desde a independência do país, que aconteceu em 1825. Já teve de tudo: ditadura militar, ditadura civil, triunviratos, juntas militares. Apesar do passado turbulento, tenta manter uma certa estabilidade política. Desde 1980, busca transições de governo pela via eleitoral. Reconhece em sua constituição que é uma nação pluricultural e plurirracial e oficialmente se chama Estado Plurinacional da Bolívia. São 39 nações indígenas e brancos, mestiços e negros. São 3 os idiomas oficiais: espanhol, quéchua e aimará.
No início do século XXI surgiu um movimento nacionalista de esquerda que uniu os grupos políticos indígenas mais importantes aos sindicatos mineiros, que são os mais poderosos do país. Sob a liderança de Evo Morales o MAS (Movimento para o Socialismo) vem comandando a política boliviana. A crise desta semana está ligada à tentativa de Morales de candidatar-se a um quinto mandato presidencial. Lucho Arce, o atual presidente, que pertence ao MAS, era muito ligado a Morales mas parece que não quer ficar apenas como “esquentador” de cadeira para ele. Assim, a aliança entre os dois está se aproximando do ponto de ruptura.
O papel do burlesco general Zuñiga nessa tentativa de golpe ainda não está esclarecido totalmente. Ele tinha sido demitido pelo presidente Arce de seu cargo de comandante das Forças Armadas depois de ter dado uma entrevista para a TV boliviana dizendo que não permitiria uma nova candidatura de Evo Morales, custasse o que custasse e usaria até mesmo armas para isso. Lucho Arce deve ter sentido que o general havia passado do tom e o demitiu. No dia seguinte o general foi tirar satisfações com o presidente montado em um blindado e invadiu o palácio presidencial. No final do dia, Zuñiga foi preso. A clarinada fora de hora custou o cargo, o comando e a liberdade do general. Aqui o governo Lula refutou duramente o golpe contra a democracia. Mas deputados federais de extrema-direita, como Ricardo Salles, PL-SP, aproveitaram o malfeito militar boliviano para tachar os militares brasileiros de covardes, insinuando que os testículos dos militares bolivianos seriam mais fortes que os dos brasileiros. Foi apoiado pela deputada federal Bia Kicis, PL-RJ. Literalmente foi o que ele disse. Não é a primeira vez, nem a segunda, que a extrema-direita chama as Forças Armadas do Brasil de covardes. Quer saber, passou da hora de se punir esses falsos patriotas e usurpadores dos ideais brasileiros, que a cada quartelada lá fora não perdem tempo de expor seu ódio pela democracia, essa mesma que proporcionou a eles a chance de exercerem um cargo político.
Enfim, mais uma tarde ensolarada na América Latina. Com seus sustos, suas balas e seus vícios.
“Por el Che que murió fusilado allí, luchando por su sueño”.